Comentários de Paulo Raful ao poema hindu Homenagem à Deusa
Introdução
Tomemos como ponto de partida um diagrama clássico no Ocidente, facilmente adaptável ao Raio de Criação. Utilizado por Dante Alighieri, esse diagrama coloca Deus no centro de todas as coisas, no centro de todo o Universo. Ele seria o Incompreensível, o Inefável, de Quem nada se pode dizer. O Supremo emite o que, na linguagem ocidental, chamamos de Primum Mobile , ou seja, um primeiro princípio que move tudo e que, analogicamente falando, é masculino. Esse princípio masculino, por sua vez, emite o princípio feminino. A ordem é esta. Vocês já podem perceber que este diagrama, esta estrutura de pensamento, é bastante semelhante à do Gênesis, onde aquilo que podemos chamar de Deus cria Adão que, de sua costela, cria Eva. É o mesmo tipo de pensamento expresso em uma linguagem diferente. Desta forma, o Gênesis fica até mais compreensível: é uma cópia do que se passa no Universo. “No princípio criou Deus o Céu e a Terra” (Gênesis, 1). É do que estamos falando.
Quando pensamos em etapas sucessivas, o Primum Mobile , que nesse caso seria o Céu, cria a Terra; o anterior sempre cria o posterior. Nos termos do Raio de Criação, por exemplo, o Sol cria Todos os Planetas. Até astronomicamente falando, da Terra sai a Lua. Tudo, porém, vem do princípio do Raio de Criação. É fácil conciliar as duas linguagens. Então, voltemos: o Primum Mobile insemina o princípio feminino, que concebe, gesta e desenvolve o Universo.
A analogia com o ser humano é perfeita: o homem insemina a mulher e, portanto, é o primum mobile em relação a ela; depois, ele se retira e ela faz todo o resto. Isso explica, inclusive, o labor quase de formiga que as mulheres fazem quando cuidam da casa.
Em uma linguagem mais rigorosa, o Primum Mobile seria o Pai, o princípio feminino seria a Mãe e o restante do Universo, o Filho. Na visão de Dante Alighieri, típica da Europa naquele momento, o princípio feminino é chamado de Cœlum Stellatum (o céu estrelado), e corresponde ao Zodíaco ou à Via-Láctea. Tomando por base o Raio de Criação, podemos dizer que “Todos os Mundos” é o Pai e a Via-Láctea, a Mãe. Esta seria, na Mitologia grega, o leite derramado por Hera, a Juno romana. É o próprio leite materno, é a própria Mãe, expressa no leite de Hera.
A simbologia antiga não se preocupava em saber se existia alguma outra coisa além da nossa galáxia. Eles viam a Via-Láctea que, para eles, era o Universo todo. Hoje sabemos pela ciência que a nossa é apenas uma galáxia particular em meio a muitas outras.
Então, podemos dizer que Deus emite uma Vontade. Na verdade, Ele é “A Vontade”. Depois Dele vem o Primum Mobile e, depois ainda, o Cœlum Stellatum .
Todos os três estão no ser humano. A forma e a energia correspondem à Mãe. Voltemos à analogia humana: a inseminação, ninguém vê. Antes dos testes de DNA, que são muito recentes, podia-se dizer que “esta fulana é mãe desta criança”. Mas ninguém sabia com absoluta certeza quem era o pai. Não se vê o pai, ela pode escondê-lo.
O espaço também faz parte da Mãe, é uma condição dela. Tudo o que se vê é a Mãe Universal. Ela é tudo o que está manifestado, o que é perceptível: espaço, forma e energia. Podemos acrescentar aí o tempo, que é Ela também. Temos, portanto, quatro pontos que a identificam. Na tradição hindu, Kali , uma das manifestações da Mãe Universal, é, entre outras coisas, o tempo. Kali é o tempo, o Saturno, da tradição hindu. É ela que corta, que liquida todo o mundo.
Para evoluir, não podemos ficar restritos a Ela. Temos de nos lembrar também do Invisível que é Ele, que pode também ser chamado de pensamento. (Hesito em usar esta palavra porque costumamos usá-la referindo-nos a um nível muito modesto.) Ele é o Nous da tradição grega, a concepção. Ele concebe e Ela gesta. Ele é a Consciência, Ela é a Vida. Ele seria o Espírito que, nas línguas latinas, também tem o sentido de pensamento. Dizemos: “esse cara tem o espírito atilado” ou “fulano tem o espírito vivo”. Esses termos todos formam um buquê de significados e em relação à alma existe outro buquê de sentidos. A alma é Vida, é o que anima. Portanto, o Primum Mobile é o Espírito e a Mãe é a Alma Universal. Posto isso, podemos começar a falar da Grande Mãe, porque tudo o que fazemos é Ela. A tendência da humanidade é ficar restrita a Ela e não perceber o Invisível que está por trás Dela, ou seja, o Espírito. Na prática, ficamos sempre presos à animação das coisas e esquecemos o Espírito, a Consciência. É como se ouvíssemos só a palavra e esquecêssemos o silêncio. Neste sentido, somos órfãos de Pai. É o nosso grande problema.
O grande enfoque do trabalho gurdjieffiano é a lembrança do Espírito: lembrar que Ele existe, que a Consciência existe. Quando o Sr. Gurdjieff fala em energia, refere-se a ela como ponto de partida e apoio, mas o tempo todo ele fala de Consciência. Diz: “vocês estão dormindo”... Mesmo Cristo não fala nunca de energia, fala de “lembrar-se do Pai”, “acordar”, “despertar”.
O “sono” de que fala o Ensinamento seria o esquecimento de que atrás da Mãe existe um Primum Mobile , uma Consciência. Na linguagem que usamos aqui, podemos dizer que atrás da forma, da energia, do espaço e do tempo, há uma Inteligência. Se usarmos nossa mão como símbolo, temos quatro fatores horizontais que seriam a Mãe, representados pelos quatro dedos (segundo ao quinto), e nos esquecemos do polegar, que representaria a Consciência, o Pai. Nesse sentido, somos como os animais: os grandes primatas não têm polegar.
Buda, na origem, e o Zen budismo não falam de energia. O budismo Zen, que é de altíssima qualidade, fala diretamente da Consciência e muito pouco de energia. Posteriormente, os budistas tibetanos, influenciados pela Índia, passaram a falar de energia, e hoje a veiculam por meio do budismo tântrico.
Feitos esses esclarecimentos, podemos começar a examinar o texto, que é importantíssimo.
Homenagem à Deusa
1
Homenagem à Deusa!
À Grande Deusa, à Auspiciosa!
Homenagem ainda, homenagem
à Natureza generosa!
Deferentes, nós A saudamos!
Quando o poema fala na Grande Deusa, está-se referindo ao Universo inteiro. Isso fica confirmado na expressão “à Natureza Generosa”. Não se trata da natureza apenas como manifestação terrestre. A “Natureza Generosa” é todo o Universo. Aqui há uma coisa muito linda, uma atitude de reverência ao Universo inteiro, que é auspicioso. É uma natureza auspiciosa, uma idéia contrária à do “vale de lágrimas”. Ela é a Mãe de todas as possibilidades. Olhando pelo ângulo do planeta Terra, com seus problemas de guerra, de campos de concentração e tantos outros, temos, sem dúvida, a impressão de que é um “vale de lágrimas”. Mas, quando enxergamos tudo pela ótica do princípio universal, sentimos que viver é um privilégio.
2
À Terrível! à Eterna!
à Gaurî (1) que sustenta o mundo!
À Claridade-lunar,
À Lua benevolente,
Homenagem ainda! Homenagem!
Gaurî aqui significa “a branca” (luz branca), ao passo que Sharvâni , que aparece na estrofe seguinte, significa “a noturna”. Temos, portanto, dois aspectos: ela é o reflexo da luz e é a sombra. Na Lua, que corresponde ao final do Raio de Criação, está o Deus Forte. É Ela que está ali, adormecida. É esse o sentido da kundalini , da energia-Mãe do Universo. Gaurî é o Deus Forte entranhado na matéria. É a potência que pode ser equiparada em força à bomba atômica. O átomo, a menor coisa existente, tem uma potência destruidora fantástica. Ela é “terrível”, como se diz nesses versos. Podemos entender onde se insere a colocação gurdjieffiana contra a Lua, quando diz que ela nos come. Quando o poema fala em claridade lunar, em lua benevolente, está dizendo que a força total da Mãe do Universo encontra-se em estado encolhido, enrolado e diminuto como a potência atômica. Então ela é terrível e, ao mesmo tempo, maravilhosa. É a kundalini do Universo. Isso tem um paralelo dentro do nosso corpo. Em determinado momento a gente quer buscar energia. O contato com a região abaixo do umbigo deixa-nos felizes. Estamos trabalhando isso na Revitalização Integral. Quando entramos em contato com as glândulas sexuais, somos agraciados com o bem-estar contido nessa potência. Temos ouvido vários depoimentos nesse sentido.
3
À Boa-Sorte,
à Prosperidade, à Riqueza!
a Sharvâni (2) ,
Sorte e má-sorte dos reis,
Oferecemos nossas homenagens!
A energia-Mãe traz boa sorte, prosperidade e riqueza, dependendo da relação que se estabeleça com Ela. Quem não a compreende, quem se julga poderoso diante dela, está liquidado. Mas se puder compreendê-la, entrar em contato com Ela, homenageá-la, terá boa sorte, prosperidade e riqueza. Na introdução, demos a chave da questão: não se trata simplesmente de entrar em contato com as regiões onde Ela está localizada, com o baixo ventre, mas de encontrar O Que Lhe deu origem, isto é, a Consciência. É encontrar o Pai ou o Marido dela. Só a Ele, Ela respeita. Aqui está o ponto. O restante da criação, Ela trata como filho. As relações entre mãe e filho têm duas facetas: de um lado, toda a proteção e, de outro, uma imensa tirania. A tendência da Mãe é interferir, é dirigir. Por analogia, a mesma coisa acontece com o dono de uma empresa: ele concede benefícios aos funcionários, mas também os suga. A lei é sempre a mesma. Só há uma solução: sair por cima, pela Consciência. Os eventuais excessos do princípio feminino só podem ser corrigidos por Ele.
4
Àquela que é, ao mesmo tempo,
o Rio-Difícil (3) e a Outra-Margem!
a Essência imutável
e a Criadora!
À Idéia!
À Negra e à Cinzenta,
homenagem, ainda! Homenagem!
Esta quarta estrofe expressa bem o que estamos dizendo: Ela é ao mesmo tempo “o Rio-Difícil e a Outra-Margem”. O Rio-Difícil é a expressão hindu correspondente ao “vale de lágrimas”. Mas Ela é também o paraíso, o mundo superior, o mundo celeste. É nossa oportunidade de retornar conscientemente ao Supremo. É a matéria-prima, a condição, o campo para se chegar a Ele. Na história da humanidade houve movimentos que, durante muito tempo, só homenagearam a Mãe universal. Esses caminhos produziram grandes aberrações, porque se esqueceram do princípio masculino. O oposto também produziu aberrações. O patriarcado rebaixou o papel do feminino a uma condição humilhante. Nas sociedades radicalmente patriarcais, a mulher não precisa estudar, é feita para procriar e servir ao marido.
Sempre houve sociedades matriarcais, mas algumas olharam o masculino com desprezo. Algumas sociedades contemporâneas, ditas primitivas, são matriarcais, como certas tribos africanas. A sociedade em que vivemos tem também uma conotação matriarcal: fixa-se na matéria, na energia. O que caracteriza, portanto, o verdadeiro matriarcado é a adoração da forma, uma das quatro manifestações da Deusa. Adoramos a forma, a energia, o tempo e o espaço. Como exemplos de adoração da forma e da energia, poderíamos citar, respectivamente, o culto ao corpo e à juventude, muito presentes no Brasil hoje. Em uma sociedade justa, teria de haver equilíbrio: a valorização do jovem, que é absolutamente natural, mas também o respeito ao ancião que, simbolizando o princípio masculino, seria o sábio, o inteligente, o orientador. A figura do ancião tentando reencontrar-se é um fenômeno recente em nossa sociedade.
5
Àquela que é, ao mesmo tempo,
a Muito-Amável e a Terrível!
Àquela que sustenta o mundo (4) ,
à Deusa da Ação,
homenagem ainda! Homenagem!
A quinta estrofe começa falando da mesma coisa dita acima. Em seguida afirma que Ela é “aquela que sustenta o mundo”. O tradutor diz que um dos nomes da deusa Terra é “o pilar sobre o qual repousa o Universo”. Mas ele se engana, pois Ela é o próprio Universo, e não apenas a Terra. O poema fala ainda em “Deusa da Ação”. A sociedade ocidental, que só valoriza a ação, é uma sociedade matriarcal: “Vamos, aja, não fique parado, vamos correr, produzir”. O velho René Guénon já o apontava. Esta é uma atitude tipicamente feminina. Nesse sentido, praticar o recolhimento é um ato perfeito, porque chamamos, ao mesmo tempo, a Consciência e a Energia, realizando, pois, a Santíssima Trindade. Por isso estamos praticando o mantra: “eu não sou o corpo, não sou as emoções, sou a testemunha que assiste”. Podemos chamar o Primum Mobile de testemunha que acolhe o plano energético, mas não se mistura com ele.
6
À Deusa que chamamos
a Magia-de- Vishnu (5) ,
presente em todos os seres,
homenagem ainda! Homenagem!
A magia de Vishnu é Maya. O Universo nos hipnotiza, nos ilude com sua magia, adormece-nos. Na verdade, é o grande amortecedor de que fala o Sr. Gurdjieff. Passamos da infância à adolescência, então à idade adulta, em que temos de ganhar a vida, e depois morremos. Ela nos coloca em uma ciranda, esta é a sua magia. O fundamento do nosso Trabalho é esse gesto de recolhimento ao plano da Consciência, da testemunha e, ao mesmo tempo, a aceitação da energia. Faço primeiro uma separatio e depois uma coligatio . Posso fazê-lo no cotidiano, sentado, andando, nadando, não importa. O “Princípio Universal da Vida”, que usamos como mantra, é Ela. Mas quando dizemos “Salve”, é Ele que está falando. Ele a saúda e homenageia.
7
À Deusa que chamamos
a Consciência de si,
presente em todos os seres,
homenagem ainda! Homenagem!
É Ela que nos ajuda a ter a “Consciência de Si”. Viemos a este planeta para obtê-la. Dentro Dela, de alguma maneira, tenho a Consciência de Mim, ou seja, começo a formar uma individualidade. Depois, preciso ir além Dela, e alcançar a Consciência Cósmica. O Sr. Gurdjieff diz isso: primeiro buscamos a Consciência de Si, depois a Consciência Cósmica. Tenho de ter a Consciência de Mim. A gente forma uma individualidade e depois, para poder evoluir, começa a entrar no jogo Dela. Na família, forma-se um filho para que ele ganhe sua própria individualidade e isso corresponde à Consciência de Si. Depois que ele a adquiriu, começa a ver melhor o jogo familiar para eventualmente libertar-se dele, ou participar de outra maneira.
8
À Deusa que reside
Como Inteligência (6)
em todos os seres,
homenagem ainda! Homenagem!
O que significa “a Deusa que reside como Inteligência em todos os seres”? Se fizermos um pequeno retorno à primeira estrofe, que diz: “Homenagem à Grande Deusa Auspiciosa, à Natureza Generosa”, podemos traduzi-lo como “Homenagem a toda Manifestação”. Tudo o que é manifestado partiu de um Princípio. Pensando em termos de geometria, podemos dizer que toda figura geométrica partiu de um ponto para se manifestar em uma forma geométrica mais sofisticada.
Assim, podemos dizer que toda Manifestação é feminina; Ela é o Princípio Feminino do Universo. O Um seria neste caso, na nossa linguagem, o Princípio masculino. A rigor, o Um não é apenas masculino; é masculino e feminino ao mesmo tempo. É como se o Um usasse seu lado masculino e seu lado feminino para fazer o Dois, que é feminino. O Um, na verdade, contém tudo e, portanto, não pode ser considerado apenas masculino. Mas, de um ponto de vista didático, dizemos que é masculino. Isso seria, em termos universais, uma variante do que diz o Gênesis a respeito de Adão e Eva. Eva, simbolicamente falando, sai de uma costela de Adão. Temos a mesma coisa aqui. O Dois – o Manifestado, a Natureza, a Grande Deusa – sai do Um.
O Zero seria o Inefável, e Dele nada podemos dizer. A primeira manifestação do Zero, ou, para usar a linguagem dos Fragmentos (o livro Fragmentos de um Ensinamento Desconhecido , de P. D. Ouspensky, Editora Pensamento), do Absoluto, é o Um, é o Ponto. Usando outra analogia, corresponderia ao espermatozóide. É como se o Um contivesse o espermatozóide e o óvulo ao mesmo tempo. Ele produz toda Manifestação, que, em relação a Ele, é passiva. É a energia do Um que se exterioriza e produz tudo o que é manifestado. Então, dizemos que toda Manifestação é feminina. Por isso o poeta diz: “à Deusa que reside como Inteligência em todos os seres”. Mas é claro que toda Manifestação, a Grande Deusa, contém os princípios masculino e feminino. Vemos isso nos animais, no ser humano, em tudo. Usando a linguagem dos Fragmentos , falamos em força ativa e força passiva. A força que é ativa em um dado contexto pode ser passiva em outro, e vice-versa.
9
À Deusa que reside
como Sono-do- Yoga (7)
em todos os seres,
homenagem ainda! Homenagem!
O Sono-do- Yoga é o que se chama, em sânscrito, Yoganidra . O que é o Yoganidra ? É um estado de alta qualidade entre o estado de sono e o estado de vigília. É um estado intermediário que, na linguagem gurdjieffiana, é conhecido como Lembrança de Si. Quando praticamos na calma (meditação que se faz sentado), entramos em um estado de relaxamento profundo, que não é totalmente passivo como o sono comum, mas também não é ativo, porque não nos envolvemos com as coisas do cotidiano como no estado de vigília. Na verdade, o Yoganidra é um fino estado de isenção.
Leva muito tempo para o nosso racional aceitar esse estado. Para nossa razão comum, parece ser sono, mas é diferente de nosso estado de sono comum, não podendo ser chamado por este nome. É um estado finíssimo! Se pudéssemos sempre agir a partir dele, faríamos magia o tempo todo. Qualquer atividade profissional exercida a partir dele torna-se mágica.
É o chamado interstício, o intervalo positivo. O taoísmo chama esse estado de não-ação; seria a ação na não-ação. Fala-se aqui em Sono-do- Yoga porque o poema é hindu, mas o taoísmo e o hinduísmo falam do mesmo estado. Na linguagem gurdjieffiana, chamamo-lo “Lembrança de Si”. Ele tem um pouco do estado de sono, porque implica um relaxamento, uma abertura, um contentamento, um despojamento, uma não-identificação; e tem um pouco do estado de vigília, porque permanecemos cientes de tudo o que se passa a nossa volta.
10
À Deusa que reside
como Fome
em todos os seres,
homenagem ainda! Homenagem!
A idéia de Fome aparece no livro Do Todo e de Tudo, de autoria do Sr. Gurdjieff, como o processo “trogloautoegocrático”. Todos os seres do Universo foram criados com Fome, ou seja, todos precisam de algum alimento que venha de fora. Essa é a idéia. Nessa linha, quando constatamos que a Fome é um dos aspectos da Deusa, concluímos que Ela, em Si, é carente.
Então, toda a manifestação universal é carente, precisa de algo. Isso nos permite fazer várias reflexões, não só no que se refere à mulher especificamente, mas a toda e qualquer situação em que se esteja em uma posição dita “feminina”. Por exemplo, um funcionário está nessa posição em relação ao patrão, assim como o capitão em relação ao general. É sempre uma situação em que se tem de “pedir”. Se levarmos isso para o campo da política, entenderemos melhor por que as pessoas almejam postos de mando. Os que detêm o poder em alguma medida têm a impressão de ser Deus. Por exemplo, o prefeito de uma cidade é procurado por pessoas que precisam de alguma coisa, têm fome de algo. Então ele, muitas vezes, pensa ser Deus, e não percebe que não é nada.
A manifestação inteira pede algo, porque não está completa. Por isso, por definição, a Deusa está sempre em movimento para a frente. É o movimento evolutivo. É por isso que o Sr. Gurdjieff diz que há uma evolução perene. Foi o que Darwin percebeu brilhantemente do ponto de vista biológico. É o impulso perene de progresso que nos estimula. Por conseguinte, nada pode permanecer estacionário. E as pessoas vêem isso, mas não notam uma outra coisa: todos os dias, mesmo sem necessidade aparente, tudo deve estar em transformação. Em uma empresa, por exemplo, não se pode deixar cair o faturamento para transformar aquele produto ou aquela atividade que não vende mais. Devemos lembrar sempre que a vida está em constante mutação. E não tem jeito, é assim mesmo.
Cada momento é único, nunca mais se repetirá. Nada se repete jamais no processo da manifestação: isto é uma necessidade da manifestação, ou seja, da Deusa, do Princípio Feminino – o movimento para a frente. Daí surge uma coisa muito interessante: se Ela está em constante mutação, existe também, em cada um de nós, algo que é representante do Um e que não muda: é a tomada de consciência. O poema diz, na sétima estrofe, que a Consciência de Si também é Ela. Mas a tomada de consciência do movimento da Deusa não é o Princípio manifestado. Então, poderíamos dizer que Ela é Tudo: é nosso pensamento, nossa emoção, nossa sexualidade, nosso corpo, enfim, é tudo o que existe. Só há uma coisa no Universo que não é Ela: a possibilidade de tomar consciência Dela. Isto, no poema, não ficou claro.
Portanto, se tomo consciência da minha pessoa, ainda é Ela. Mas quando tomo consciência não só de mim (consciência de si), mas de todo o jogo Dela, eu sou, digamos, o representante do Senhor. Quando tenho esse olhar, essa consciência que vê todo o jogo Dela em mim, no outro, em um sapo, na galáxia, em tudo, eu sou o Senhor que contempla. Nesse momento, e só nele, reconstituo a unidade original.
11
À Deusa que reside
como Sombra-e-Luz
em todos os seres,
homenagem ainda! Homenagem!
“A Deusa que reside como Sombra e Luz em todos os seres” significa que, em todos os seres, há consciência e inconsciência, harmonia e desarmonia, violência e paz. Isso é interessante, porque tendemos a classificar todas as coisas, e não apenas os seres humanos, por um dado comportamento em determinado episódio. Por exemplo: dizemos que o bandido da favela que assaltou e matou é um desgraçado, e isso é verdadeiro. Mas, se convivermos com ele, veremos que tem outros aspectos que são até muito humanos. É curioso como, na mesma pessoa, encontramos a sombra e a luz.
Outro exemplo: a inveja. Todo ser humano tem inveja dentro de si. Mas quem é mais consciente, quem está mais em seu centro e é, portanto, mais sólido, não aceita que a inveja o domine. Muitas vezes percebemos que o traço principal de alguém é a inveja. Invejar é querer ser como o outro, ou ter o que o outro tem. Em geral, as pessoas não têm consciência disso. O traço principal é um viés na pessoa, mas ela não o percebe. Se apontarmos o traço principal de alguém, a pessoa se defenderá imediatamente. Quando o percebemos, temos de ter uma extraordinária tolerância com essa pessoa, dar espaço para ver se ela consegue emergir disso. Se não conseguir, sua vida inteira estará comprometida, ela criará mil problemas para si e para os outros. Se você tem eixo, pode conviver com essa pessoa; caso contrário, não deve fazê-lo. De qualquer forma, há limites para a tolerância. Um prazo de alguns anos para tolerar alguém é suficiente. Às vezes, você percebe que aquela pessoa não tem jeito. Há casos em que as pessoas estão inteiramente apodrecidas, não têm mais jeito.
O poder da Mãe Universal
As estrofes 12 a 24 falam de aspectos do poder da Deusa universal.
12
À Deusa que reside
como Potência-Cósmica
em todos os seres,
homenagem ainda! Homenagem!
Este tema é crucialmente importante para quem tem uma busca, uma aspiração. Precisamos ter em mente que existe uma potência cósmica, um poder que reside não só no ser humano, mas em todos os seres. Isso é ignorado pela maioria das pessoas quando pensa: “eu sou inteligente”, “eu não sou inteligente” ou ainda “eu sou capaz”, “eu não sou capaz”. As pessoas sempre pensam em termos de qualidades pessoais; não têm noção de que o poder cósmico existe em todos os seres – isso é fruto do pensar do ser humano adormecido. O que caracteriza a pessoa em um estágio de consciência modesto é que ela vê tudo com estreiteza. Quando o poema fala “À Deusa que reside como potência cósmica em todos os seres”, está convocando as pessoas que o lêem a se conscientizarem desse fato. Entre nossos contemporâneos, quem enfatizou demais essa nota foi Dom Juan, um devoto do poder da Mãe universal, do poder ligado à terra.
A Mãe universal é a encarnação do poder. O Universo é Consciência e Poder, isto é, existe sempre o que testemunha, o que presencia e interfere quando necessário, e existe também o poder que ele tem, a força e a energia que ele tem. Não é difícil compreender isso. Podemos fazer uma analogia. Tomemos o nosso caso, sentados aqui nesta sala: estamos aqui e, de repente, toca a campainha; no primeiro momento, tomamos consciência do fato; depois, temos o poder de levantar e atender. É simplesmente isso! Temos esse poder. Para citar outros exemplos: quando fazemos uma conta numérica, temos o poder mental de realizá-la; quando ouvimos uma composição musical, temos o poder do sentimento para apreciar se ela é harmônica ou não, e assim por diante.
Falando em termos de tecnologia, o rádio, a televisão e o computador são manifestações da Mãe Universal. É o Seu poder que está fluindo. É como se, de alguma maneira, Ela nos possibilitasse o acesso a tudo isso neste momento da história da humanidade. O fato é que a humanidade está conseguindo lidar materialmente com Ela. Chegou a um ponto em que está conseguindo acessar aspectos da Mãe de um modo absolutamente impensável cem anos atrás; há hoje, por exemplo, uma rapidez fantástica de comunicação entre as pessoas por meio da Internet; os avanços no campo da biologia permitiram que a humanidade tivesse acesso ao DNA, o que possibilitou a interferência do homem na genética. É a Mãe universal que está permitindo tudo isso.
Assim, de acordo com a visão de um Universo inteligente e vivo, como a que estamos afirmando aqui, não podemos mais admitir que o ser humano possa fazer algo independentemente de ordens superiores. Deve haver alguma coisa, que provavelmente faz parte de um plano que visa à evolução da humanidade.
Cientistas dos mais variados tipos estão tendo acesso a essas informações, mas provavelmente não sabem direito como isso se passa; o que sabem é que, fazendo desta ou daquela forma, vão obter tal resultado. São anos de pesquisa para que tudo se engrene. Talvez tudo isso esteja acontecendo para servir um núcleo da humanidade que, este sim, está evoluindo e que, por esses meios rápidos de comunicação, pode espalhar a notícia da possibilidade de evolução para um número muito maior de pessoas.
Como exemplo, podemos citar nosso Trabalho. Por muitos anos, falamos dessa possibilidade a um número limitado de pessoas. Hoje, por meio de nosso programa de rádio e do site, levamos a boa notícia a milhares de pessoas que, antes não tinham a menor possibilidade de acessar esse tipo de informação, por viverem afastadas dos grandes centros urbanos, como São Paulo. São pessoas que tinham alguma aspiração nesse sentido e estão dizendo: “Existe, sim, alguma coisa que fala do que eu sinto”. Portanto, não importa quem criou o projeto. Para a Mãe Universal, a função dessa pessoa foi criar, ela tinha aquela competência. É evidente que o avanço tecnológico está à disposição do mundo dos negócios, das coisas mais banais, mas é também um instrumento do Ensinamento.
13
À Deusa que reside
como Virtude-da-Paciência
em todos os seres,
homenagem ainda! Homenagem!
A paciência é uma grande virtude, é prima da tolerância. Podemos pensar em paciência e tolerância não apenas em relação aos outros seres humanos, mas a tudo o que nos acontece.
A palavra “paciência” tem evidentemente a mesma raiz de “paciente”, isto é, aquele que é passivo, suporta, recebe. Esta é uma grande qualidade da Deusa, uma Virtude Sua, que é conseqüência da Potência Cósmica. Povos antigos, como os judeus e os chineses, tiveram a paciência de atravessar situações muito difíceis. Os armênios também foram vítimas de um genocídio absurdo.
É importante saber que a verdadeira paciência vem da Potência Cósmica, que dá força para suportar tudo.
14
À Deusa que reside
como Casta (8)
em todos os seres,
homenagem, ainda! Homenagem!
Casta, neste caso, tem um significado diverso do que conhecemos. A idéia de casta pode ter um lado completamente desprezível, como acontece na Índia, cujos habitantes ficaram prisioneiros dela. Havia lá basicamente quatro castas: a dos brâmanes, os sacerdotes que cuidavam da conexão das pessoas com Deus; a casta dos guerreiros, a dos comerciantes e finalmente a dos camponeses. Era mais ou menos assim.
Hoje elas se multiplicaram em uma enorme quantidade de subdivisões. De qualquer maneira é um sistema bastante rígido, em que não há mérito próprio, porque se herda a casta a que se pertence. Muitos indivíduos dessa sociedade revoltaram-se contra o sistema, mas naturalmente pagaram um preço muito alto. Com certeza, o sentido de Casta no poema não é esse. Vejo aqui duas possibilidades de dar um real sentido à palavra: a primeira é a de que cada um nasce com certas inclinações e talentos oriundos do seu tipo. Nesse sentido, o verso “Ela que reside como Casta” significa que Ela se manifesta em cada pessoa como certos talentos, certas inclinações. Contrariar a inclinação de uma pessoa é uma violência, e não a estimular é uma pena. Não devemos, por exemplo, obrigar um filho a estudar medicina quando ele claramente tem inclinações artísticas.
Uma segunda interpretação seria ver a questão das castas como diferentes níveis de qualidade de ser, em outras palavras, níveis de qualidade de Consciência. Isso é difícil de ser aceito pela maioria das pessoas, que se julgam superiores por ocuparem uma posição de poder, seja político, financeiro ou qualquer outro. Aqui se fala de Casta como “qualidade de ser”. É a Deusa, portanto, quem vai determinar a qualidade de ser de alguém.
15
À Deusa que reside
como Modéstia
em todos os seres,
homenagem ainda! Homenagem!
A Deusa sabe que Ela não é o Princípio Supremo, e que foi Ele que a emitiu. Neste sentido, Ela se manifesta como Modéstia, e nos ensina a servir adequadamente, sem nos desvalorizarmos. O grande rei é aquele que serve o seu povo, não aquele que o usa. Por isso, devemos sempre nos perguntar: estamos querendo usar os outros ou servi-los? Uma coisa é nos apoiarmos uns nos outros; outra é querer usar as pessoas em benefício próprio.
No grupo temos de ser modestos o suficiente para perceber que, ao trabalharmos, estamos servindo ao processo de evolução do Ser, que é a grande Evolução. Devemos ter sempre em mente essa grande meta.
16
À Deusa que reside
como Paz-do-Coração
em todos os seres,
homenagem ainda! Homenagem!
É o poder da Mãe universal que dá paz ao coração. Para ilustrar este item, podemos citar um grande ensinamento das artes marciais chinesas ou japonesas. Os mestres dessas artes diziam ao guerreiro que ele deveria lutar sempre com paz no coração. Mesmo diante do perigo da morte iminente, deveria exercitar essa possibilidade. É isso o que o poeta está dizendo: em qualquer situação da vida, devemos acessar a Paz-do-Coração que a Mãe universal nos possibilita.
17
À Deusa que reside
como Virtude-da-Confiança
em todos os seres
homenagem ainda! Homenagem!
A Confiança é uma grande qualidade. Quem tem real confiança está em contato com a Mãe Universal, está em contato com o Poder – porque quem tem confiança, tem poder. Vejamos, por exemplo, uma pessoa que não tem confiança para falar em público. É claro que, se eu não domino determinado assunto, não posso ter confiança para falar dele. Mas a Confiança citada aqui é a confiança de estar vivo, de lutar, de progredir, de evoluir. Falta confiança a quem tem pouco contato com a Mãe Universal. Essa pessoa dispõe, portanto, de pouco poder. Alguém pode perguntar: “Bom, mas como entrar em contato com a Mãe Universal?” E o Trabalho responderá: pela sensação do corpo, pela descida para o “ hara ”, o centro do corpo físico. Quando fazemos os movimentos, entramos em contato com a Mãe Universal. Quando colocamos a atenção na respiração, quando buscamos a sensação do corpo, estamos fazendo contato com Ela.
Há uma cena da iconografia católica, da Assunção de Nossa Senhora aos céus, em que ela é coroada pelo Pai e pelo Filho, ou seja, é reconhecida e homenageada por Eles, que lhe conferem o Poder. É muito significativo; dentro desta visão, ela é o Espírito Santo, pois a Trindade seria Pai, Filho e Mãe. No antigo Egito, a Trindade era formada de Osíris, Ísis e Hórus. Hórus é o Filho, Osíris é o Pai e Ísis é o Espírito Santo. É o Espírito Santo que une, é o elemento do meio. Os gnósticos vêem o Espírito Santo como feminino. A possibilidade que o Trabalho nos dá de ler as diferentes tradições resulta em um patamar superior de compreensão. Portanto, fazer contato com a Mãe Universal é, traduzindo na linguagem cristã, fazer contato com o Espírito Santo.
18
À Deusa que reside
como Charme
em todos os seres,
homenagem ainda! Homenagem!
A idéia de charme é muito ampla, como amplo é o sentido da palavra. Pode significar também “magia de sedução”. O charme, em nosso cotidiano, não se refere apenas à vida amorosa, mas também ao mundo dos negócios. É preciso ter charme também para vencer na vida, para se expressar, para fazer uma revista, por exemplo. Charme é beleza! Alguém pode perguntar: “como é que eu entro em contato com o charme”? A resposta é a mesma do item anterior: entrando em contato com o “ hara ”, com a respiração, com a sensação do corpo. Estes são três meios diretos e concretos de fazer contato com todas as possibilidades que a Mãe Universal nos oferece.
19
À Deusa que reside
como Milionária (9)
em todos os seres,
homenagem ainda! Homenagem!
Ela é basicamente “a Milionária”, quer dizer, aquela que produz todos os bens, toda a abundância da Terra. É a grande provedora! Muitos falam hoje em prosperidade, a palavra virou chavão. Como entender, então, a idéia de Milionária no nosso Trabalho? Temos primeiramente de entender que a falta de contato com Ela produz a pobreza. Onde existe pobreza, vamos guardar bem isso, de alguma maneira Ela não está sendo acessada.
A atitude da Mãe Divina em relação ao dinheiro é extremamente compassiva. Ela se oferece a todos! É generosíssima! Mas os sete pecados capitais vão se apoderar Dela: a gula, a avidez, a avareza, o ciúme, a inveja. O que fazer? Tomemos uma analogia fácil de compreender: As pessoas têm fazendas; a Mãe Divina vai dar a mesma soja, o mesmo milho, o mesmo café, tanto para o mais canalha dos facínoras, como para um santo que planta para colher. Nesse sentido, é igual. Este ponto é importante: Ela não julga! A Mãe Universal é só Poder. O poder é como a eletricidade, você usa tanto para iluminar como para eletrocutar um indivíduo.
Vamos fazer outra analogia que nos permitirá compreender bem Sua posição. Tomemos como exemplo a mãe de dez filhos adultos: um deles é um tremendo assassino, o outro, um ladrão, outro ainda, traficante, o outro é padre; um outro é professor e a filha é prostituta. Essa mãe tem, portanto, uma coleção variada de filhos e serve cada um deles por igual, pois todos são seus filhos. Quando põe a mesa para comerem, ela não faz distinção! Mas isso não significa que ela fique totalmente passiva em relação a cada filho. De alguma forma, ela dará um puxão de orelha naquele que seguiu um caminho injusto. O mesmo acontece com a Mãe universal. Os que seguem um caminho injusto vão, de alguma forma, receber uma punição.
É evidente que uma pessoa que nunca procurou contato com essa fonte vai viver sua vida precariamente. Mesmo que seja milionária, estará aterrorizada, porque não está em contato com essa energia.
Todo símbolo tem de ser visto de muitas formas, e vimos aqui apenas um ângulo. Como vocês sabem, o símbolo de Juno ou de Hera, a representação da Mãe Universal na Mitologia greco-romana, é o pavão. O pavão fica ali fechado até abrir sua cauda magnífica, cheia de olhos que parecem olhar em várias direções. Podemos dizer aqui que, tal como a cauda do pavão, quando entramos em contato direto com a Mãe universal, ela nos abre um leque de possibilidades antes inimagináveis.
20
À Deusa que reside
como Atividade
em todos os seres
homenagem ainda! Homenagem!
Em toda e qualquer atividade que existe no Universo, podemos dizer que é Ela quem está agindo.
21
À Deusa que reside
como Lembrança (10)
em todos os seres
homenagem ainda! Homenagem!
A palavra “lembrança” é fundamental no Trabalho gurdjieffiano. Por isso insistimos tanto em nosso Trabalho para que os alunos entrem em contato com a sensação do corpo, com a Vida. Há pessoas que ficam em contato apenas com as idéias. Nunca foram tocadas, de fato, pelo Trabalho; não têm uma busca real, porque não entraram em contato com a Mãe Universal. É Ela que nos dá a “lembrança”. Por isso, o Sr. Gurdjieff diz em certo momento: “Você precisa sentir com toda a sua massa, tem de compreender com toda a sua massa”. É disso que ele está falando.
22
À Deusa que reside
como Compaixão
em todos os seres,
homenagem ainda! Homenagem!
Voltemos aqui ao tema da Milionária. Quem é tocado pela compaixão não quer ter só para si. Ela é milionária e compassiva ao mesmo tempo, quer dizer, todo o mundo tem o direito de viver muito bem. Há países, como a Suécia e o Uruguai (de uns trinta ou quarenta anos atrás), que conseguiram dar uma excelente qualidade de vida a toda a população. É claro que são populações menores, o quadro é diferente, mas esses países provaram que o ideal de fartura para todos não é impossível.
23
À Deusa que reside
como Reconforto
em todos os seres,
homenagem ainda! Homenagem!
“Reconforto” aqui significa apoio. É Ela, portanto, que nos apóia nas horas difíceis, que nos traz o conforto de que necessitamos.
24
À Deusa que reside
como Mãe
em todos os seres,
homenagem ainda! Homenagem!
“À Deusa que reside como Mãe”: toda mãe é, por estrutura mesmo, generosa. Mesmo no caso de uma mãe atrapalhada (neurótica, até mesmo cruel) que rejeitasse totalmente os filhos (um caso patológico), ainda assim ela teria o potencial dessa generosidade. É diferente do pai! A generosidade faz parte da Anima Mundi que Ela é. Ela doa, mesmo quando não recebe nada em troca.
25
À Deusa que reside
como Agitação
em todos os seres,
homenagem ainda! Homenagem!
Aqui o poeta muda o tom que vinha marcando o poema: “À Deusa que reside como agitação”. Isso também é importante, porque a sociedade ocidental contemporânea é particularmente agitada. É a Mãe em desequilíbrio! Há pessoas que lidam mal com a energia de vida, em uma excitação constante que não leva a nada. É a pior utilização possível da energia da Mãe. Isso nos permite dar um sentido prático muito interessante: se vocês puderem cultivar a tranqüilidade todos os dias (como comecei a introduzir nos grupos), estarão regenerando a Mãe universal em seu interior. Então, além do “ hara ”, da sensação, da atenção à respiração, vamos acrescentar o “culto à tranqüilidade”, à “não-agitação”, para regenerar a Mãe universal dentro de cada um. Neste verso que fala de agitação, podemos encaixar praticamente todo o material gurdjieffiano, contido nos Fragmentos , que fala de emoções negativas, tensões e imaginação desenfreada. Tudo isso junto significa agitação.
26
Àquela que rege os sentidos
e as ações de todos os seres!
Àquela que reside
na totalidade das criaturas,
Aqui, a expressão “na totalidade das criaturas” refere-se ao Universo inteiro. Mais uma vez o poema está frisando que a Mãe Universal é a Vida Universal. Mas não só a Vida Universal, porque indubitavelmente, em alguma medida, a pedra tem vida, senão viraria pó; mas não tem órgãos dos sentidos. Os sentidos implicam certo grau de consciência. Uma formiga, por exemplo, tem certo grau de consciência, pois percebe o que se passa à sua volta e age. A Deusa é também ação. Assim, é Ela que confere a possibilidade de agir tanto à formiga como ao astro.
Podemos inferir que, se uma formiga, um minúsculo ser deste planeta, movimenta-se e tem certo grau de consciência, por que o planeta, que lhe confere os sentidos e a ação, não haveria de ter os mesmos sentidos? Em outras palavras: como é possível que se acredite que a terra, que abriga seres conscientes, seja um ser inconsciente? O Sr. Gurdjieff diz que os planetas são seres vivos, e aqui fica clara a importância do pensamento tradicional, que tem de ser um guia para quem se trabalha interiormente. Podemos dizer que se cometem dois tipos de erro no que diz respeito ao conhecimento tradicional: o primeiro é não reconhecer que há um conhecimento profundo nas antigas tradições; o segundo é idolatrar o conhecimento que nos foi legado, sem procurar aprofundá-lo. Então, a afirmação da estrofe 26 é cativante, porque vem confirmar o que nos diz o ensinamento gurdjieffiano: se o planeta Terra existe e confere vida a inúmeros seres, como é possível que não seja, ele também, um ser vivo?
27
estando por toda parte presente no mundo
sob a forma de pensamento
oferecemos nossas homenagens!
Homenagem à ela! Homenagem!
É extremamente intrigante a afirmação de que a Deusa está “por toda parte presente no mundo sob a forma de pensamento”. O pensamento que acreditamos estar dentro da nossa cabeça, isto é, preso na caixa craniana de seis bilhões de pessoas, está no Universo inteiro!
Portanto, o que chamamos de pensamento, e os gregos chamam de “nous” , é um mistério. Podemos dizer que vivemos em um oceano de pensamento, que circula como o próprio oceano. Então, uma garrafa que você lança na Austrália pode chegar ao Brasil.
O poema basicamente está afirmando que o pensamento é um fato, um princípio, um poder, uma materialidade, enfim, uma realidade universal!
Focando o planeta Terra, sabemos que toda a nossa atmosfera está sendo atravessada por ondas das mais variadas espécies, radiofônicas, televisivas, de transmissão via satélite, enfim, de tudo que a tecnologia do século XXI tem para oferecer. Imaginem quanto isso seria inconcebível para quem vivia no século XIX, por exemplo. Essas ondas atravessando o planeta seriam consideradas ficção cientifica.
Para nós, hoje, é fácil conceber que o Universo inteiro está preenchido por uma matéria inteligente que chamamos de pensamento. Esse espaço imenso, visualmente vazio (estou-me referindo ao espaço astronômico) é preenchido por uma matéria inteligente na qual estão imersos todos os planetas e todas as galáxias. Na visão ocidental (falo de Platão e Plotino), a questão é colocada exatamente assim: no raio de criação de Plotino, vem primeiramente o Uno e logo depois o Nous , que é o pensamento. Então, para eles, o universo inteiro é pensamento, que seria a matéria-prima feminina componente do Universo, logo abaixo do Uno, do qual nada se pode falar.
Portanto, o universo inteiro é uma inteligência viva e o raio de criação contém uma redução crescente de inteligência, que vai desde o Nous até, digamos, a formiga. Portanto, a afirmação do Sr. Gurdjieff, nos Fragmentos , de que o Trabalho começa pelo mental ganha uma outra dimensão em vista do que acabamos de expor.
Atualmente, estamos familiarizados com a questão de “sintonia” e “freqüência”. Acessamos uma transmissão radiofônica, por exemplo, sintonizando naquela freqüência o aparelho de rádio, ou seja, o aparelho receptor.
Bem, o Sr. Gurdjieff fala, nos Fragmentos , em “freqüência de vibração”. Dentro do que estamos examinando, precisamos abordar a questão da freqüência de vibração a partir de dois ângulos: sabemos que existe a reflexão mental, intelectual, mas existe também a experiência meditativa. Quando estamos perdidos no falar interno, estamos sintonizados com uma freqüência extremamente grosseira. Já a experiência meditativa implica a sintonia com uma vibração muito fina. Em outras palavras, o comprimento de onda do falar interno é muito diferente do comprimento de onda da experiência meditativa. Da mesma forma, quando estamos aprisionados em emoções negativas ou tensões musculares, estamos sintonizando uma freqüência muito baixa. Dessa forma, podemos dizer que o Trabalho interior resume-se em sintonizar-nos com uma freqüência cada vez mais fina de pensamento, isto é, com a substância primeira do Universo. Nesse contexto, o silêncio adquire outro sentido: não é mais apenas ausência de som, é um caminhar na direção de freqüências cada vez mais finas. Silenciar seria ingressar na substância fina e inteligente que compõe o universo. A partir disso, é enriquecedor fazer a experiência de olhar para o céu e dizer para si mesmo: “estou vendo o vazio, mas sei, por compreensão, que ele está preenchido pela inteligência universal”. Fazendo-o, estaremos sintonizando a fina freqüência vibratória que compõe o vazio. Em geral, ficamos limitados a uma baixa freqüência vibratória. Agimos como se estivéssemos sendo filmados em câmara lenta, e falamos com voz pastosa. É nessa baixa freqüência que vivemos habitualmente.
Podemos dizer que a atitude de quem quer desenvolver-se interiormente deve ser a de sintonizar com uma vibração cada vez mais fina. É muito interessante notar que, na tradição hindu, o chakra do peito, que nos interessa particularmente porque é o chakra da alma, é simbolizado (da mesma forma que a Estrela de Davi da tradição judaica) por dois triângulos perfeitos. Esse chakra é chamado, em sânscrito,de anahata , que significa “o som não produzido por um entrechoque”. A princípio parece absurdo, porque não existe som físico que não seja produzido por um entrechoque. Mas a alma é a receptora do som universal que não é produzido pelo entrechoque de dois objetos, ou seja, é receptora da vibração inicial. Yogananda insistia muito em que aqui (na cabeça) está o emissor e aqui (no peito), o receptor. O peito capta o infinito como uma antena, mas, para tanto, precisa estar em um fino estado vibratório. Isso não quer dizer que o mental não capte. Mas, do ponto de vista prático, podemos pensar no mental como transmissor e no peito como receptor. Com o chakrado peito, captamos a atmosfera de um lugar e podemos agir da melhor forma possível nessa atmosfera.
Não podemos esquecer que, quando falamos em oceano de pensamento, não estamos dizendo que nele existam apenas pensamentos de qualidade. Existe de tudo! O universo tem infinitas possibilidades. Quando ligamos o rádio, podemos sintonizá-lo em um forró ou em um programa de música clássica, para citar um exemplo. Grandes líderes, que atingiram postos de projeção e que trouxeram o mal para grande parte da humanidade, sintonizaram, por alguma circunstância, uma poderosa corrente de pensamento de má qualidade.
Os hindus apresentam isso muito bem quando falam nos devas e nos asuras . O asura , para eles, é a pessoa que reza, que faz as mesmas práticas que o deva , mas visa apenas ao poder pessoal. Equivale ao “hassnamuss” da linguagem gurdjieffiana. Já o deva faz as orações e as práticas visando ao crescimento do próprio ser.
O importante aqui é saber que o planeta Terra não é dirigido só por humanos, mas também por todo um conjunto de forças com as quais podemos sintonizar, e que vão da mais grosseira à mais fina.
Os xamãs, por exemplo, procuram sintonizar com a força de determinado animal, identificando-se com ele. Na Bíblia, na cena em que Davi enfrenta Golias com um mero estilingue e diz “estou armado de Deus, você não pode me enfrentar”, ele está conectado com o Mais-Alto. Está confiante porque fez a conexão com o Divino, sintonizou com o Divino.
28
Do mesmo modo que outrora os Deuses
cantaram-na para alcançar Suas graças
assim será Ela servida
por nosso chefe (11) , dia após dia!
Esta estrofe 28 é particularmente importante, e não foi por acaso que a puseram no fim do poema. A palavra-chave aqui é “chefe”, que o tradutor explicita como sendo Indra, o rei dos deuses, acrescentando que, na recitação ordinária, ele pode ser entendido como o chefe de nossa família ou da comunidade. Indra é Júpiter, é Zeus, é o meio da testa, ou seja, voltamos à frase do Sr. Gurdjieff: “o Trabalho começa pelo mental”. Aqui fica claro que sintonizamos o Divino por meio do mental, mas O recebemos na região do peito. Em outras palavras, é a alma que recebe o Divino, mas temos de sintonizar com ele pelo mental. Se não fizermos a nossa parte, buscando essa fina sintonia, a alma ficará morta, desligada, ou, pior ainda, sintonizada com uma freqüência de má qualidade.
Podemos então dizer que nosso chefe (o mental), o rei dos deuses, deve ter, como função básica, a ligação com a realidade universal, com a Deusa; senão, seremos um asura que só serve os próprios interesses. Não se trata aqui tampouco de só servir aos outros. O importante é sintonizar com a Deusa, por meio do nosso mental, para recebê-La no peito e, a partir daí, agir.
29
Possa a Soberana,
causa-de-toda-felicidade,
nos dar a Felicidade, o Bem,
e pôr fim às nossas desventuras!
O ser humano procura obrigatoriamente a felicidade, mas, em geral, no lugar errado. Seguindo nossa linha de raciocínio, podemos dizer que procurar a felicidade é procurar a sintonia certa. Se focar apenas a obtenção de prestígio pessoal, não estou na sintonia certa para encontrar a felicidade. Quando foco a imensidão de onde vim, o Princípio Universal da Vida, posso obter da Deusa a verdadeira felicidade e acabar com minhas desventuras.
Podemos dar aqui o exemplo do vestibulando. Se vou prestar vestibular, devo fazer a minha parte, isto é, estudar o suficiente para o exame. Feito isso, devo esquecer o problema e focar o Mais-Alto, sintonizar com uma freqüência mais fina. Mas o estudante comum não faz isso. Ele foca a própria angústia, isto é, sintoniza com uma estação de má qualidade.
Então, a fórmula para viver neste planeta deve ser: faça a sua parte o melhor que puder, sabendo inclusive que vai cometer erros, porque é típico do plano mental cometer erros; depois, esqueça-se do problema, relaxe e sintonize com a imensidão. Não sintonize com a angústia!
Uma pessoa valorosa, mas que vai atrás de seus objetivos sintonizada com a angústia, pode até obter algum progresso, pois está fazendo a sua parte, mas, muitas vezes, paga um alto preço por isso. É o caso de pessoas bem-sucedidas que, de repente, são vítimas de um AVC (acidente vascular cerebral), ou entram em depressão.
Aquele que vai atrás de luxo, de prestígio, auto-importância, cedo ou tarde se arrebenta. A história da humanidade está repleta de exemplos: Hitler, Alexandre, o Grande, e inúmeros outros.
O texto que acabamos de estudar é maravilhoso! Está repleto de ensinamentos sobre a Deusa. Não se esqueçam: o segredo está na sintonia correta. Isso explica porque alguns, como Cristo, são lembrados como uma bênção, enquanto outros, como Hitler, são recordados como uma maldição. Mas a maioria dos líderes que sintonizou com o grosseiro não deixou nenhuma lembrança.
Notas
1 “ A Branca ”, referindo-se à neve ou à lua cujo brilho branco faz parte da simbólica shivaíta.
2 “ A Noturna ”, outro nome da parceira de Shiva .
3 Referindo-se a Durgâ, “aquela que é difícil de prever” . Aqui a Deusa é, ao mesmo tempo, a que coloca o obstáculo e a que ajuda a superá-lo.
4 Um dos nomes da Deusa-Terra, que é o pilar ( pratisthâ ) sobre o qual repousa o Universo.
5 Mâyâ .
6 Buddhi , a intuição intelectual e a capacidade de despertar.
7 Nidrâ, “sono”, é uma palavra “feminina” em sânscrito. Essa Deusa emana de Vishnu mergulhado em uma meditação do tipo yoga , no momento em que surge o mundo.
8 A cada vez se indica aquilo que é “a razão de ser” de cada categoria de seres. Socialmente falando, o homem, segundo os hindus, só existe através de sua casta de nascimento ( jâti ).
9 É esse o sentido primeiro do nome Lakshmî (a parceira de Vishnu ), a Deusa-Fortuna.
10 Ou “ memória ”. Mas trata-se aqui da lembrança que se tem dos atos realizados durante a vida: a Deusa é então testemunha (e compaixão , diz-se na estrofe seguinte).
11 Indra, rei dos deuses. Mas na recitação “ordinária” pode ser entendido: “ pelo chefe de nossa família, falando em nosso nome ”; ou “ pelo chefe de nossa Comunidade ”
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