Vida Interior e Vida Exterior
SER: Os problemas e desafios que enfrentamos na vida são um reflexo de nosso mundo interior? Em outras palavras, existe realmente diferença entre vida interior e exterior?
Diferenças e similitudes
Existe uma diferença marcante e, ao mesmo tempo, de certo ponto de vista, uma é continuidade da outra. Vamos exemplificar: posso estar guiando um automóvel e, simultaneamente, ter uma experiência interior profunda em que, de repente, me encontro em um estado alterado de consciência, ou, se quiser, um estado de consciência mais amplo e penetrante. Posso perfeitamente executar uma ação banal, enquanto mantenho internamente outra qualidade. Essa é a primeira razão para afirmar que há diferença entre vida exterior e vida interior. A segunda razão, ainda mais fundamental, é que existe uma estrutura interior típica de nosso Ser, composta por vários centros, basicamente sete. Isso foi apontado pelo Sr. Gurdjieff e tem paralelo com os sete chacras da tradição hindu. Essa estrutura interna do ser humano difere, aparentemente, da do mundo exterior. Ao aprofundar o assunto, porém, percebemos que os mesmos sete planos ou centros estão também no Universo todo. No ensinamento gurdjieffiano, essa estrutura é chamada “Raio de Criação”. Em que se distinguem, então, a estrutura interna e a externa? Elas são diferentes no sentido de que minha estrutura interna continua a mesma em qualquer parte do planeta em que eu me encontre, embora a aparência do mundo exterior seja diversa em cada lugar. Permanece igual, quer eu esteja na Avenida São João, no Central Park em Nova York, cercado de areia no deserto do Saara, ou rodeado de gelo no Pólo Norte.
Um outro ponto de vista
De outro ponto de vista, podemos dizer, como você já adiantou de maneira correta, que os eventos da vida exterior de uma pessoa são uma projeção de sua vida interior. Mas grande parte de tudo que lhe acontece não depende só dela. Assim, se nasceu, por exemplo, em uma família com predisposição hereditária para a doença e morte precoce (há inúmeros casos de membros da mesma família que morrem por volta dos quarenta anos), ela estará programada para morrer cedo. É a genética comandando a duração de sua vida. Se, porém, ela tem consciência do que se passa com sua hereditariedade, se se informa sobre o que pode fazer para prolongar a vida, poderá, eventualmente, viver mais. Para compreender melhor esse ponto, temos de esclarecer que nós, como seres vivos, somos constituídos basicamente por sete correntes energéticas. Inevitavelmente, a vida de cada um é uma tradução delas. Alguns têm, por exemplo, uma forte corrente energética ligada ao dinheiro: querem ter propriedades, riquezas, e vivem atrás de dinheiro e prestígio. Outros dispõem de uma energia muito intensa de movimento; estão sempre correndo de cá para lá, passam a vida praticando esportes ou qualquer outra atividade ligada à movimentação do corpo. Há ainda pessoas com uma poderosa energia sexual, que atribuem suma importância ao sexo, enquanto para outras, cuja energia sexual tem proporções modestas, a sexualidade não é muito relevante. Então, a vida de cada um é determinada por uma ânsia em alguma dessas diferentes direções. Na medida em que somos formados pelas sete energias, nossa vida inteira é uma projeção delas – tenhamos ou não consciência. Nesse sentido, podemos dizer que vida interior e exterior são uma única e mesma coisa.
Estrutura fixa e dinamismo
Temos uma estrutura fixa, e também um dinamismo. Estou bem disposto hoje, amanhã nem tanto; hoje minhas emoções estão de um jeito, amanhã de outro. O Universo inteiro apresenta um lado fixo e outro dinâmico, faz parte de sua dualidade. A única coisa que compete a nós é tomar consciência do dinamismo. Não tenho influência sobre o tipo astrológico com que nasci, ou sobre o fato de um dos meus centros ser mais ativo do que outros. A única coisa que está a meu alcance, que depende só de mim, é conscientizar tudo o que se passa em meu mundo interno; cada um de nós pode tomar consciência da própria estrutura. Trabalhar interiormente é dar-se conta dessa estrutura. Se tomo consciência, o que ocorre? Minha vida exterior obrigatoriamente se altera, pois projeto outra coisa fora. Vamos supor que eu seja uma pessoa violenta. Se eu me der conta, posso mudar meus atos e, assim, criar menos inimizades, não gerar tanto ódio à minha volta; em conseqüência dessa mudança, haverá menor número de reações contra mim. Se não tenho essa percepção, acontece o oposto. Estou me referindo à percepção eficaz, e, para que ela seja eficaz, deve ser acompanhada de medidas para modificar o que for necessário. Somos, portanto, sinônimos de consciência e vontade, como é claramente indicado pelo Sr. Gurdjieff no famoso diagrama do capítulo dois do livro Em Busca do Milagroso. Se você toma consciência de algo e não decide mudar, se continua, por exemplo, a agir com agressividade, sua vida exterior vai sempre refletir esse estado de violência.
O desenvolvimento da consciência e da vontade
Trabalhar interiormente significa desenvolver a consciência e a vontade. Na verdade, elas já existem como sementes em cada ser humano, que, por definição, já nasce com ambas. Essas sementes são os germes de nossa individualidade. O que a define é justamente o desenvolvimento da consciência e da vontade ligadas a nossos sete centros, que são um enorme mistério. Não temos noção do que contêm os sete planos: eles são o próprio Universo!
SER: Por que as pessoas ficam tantos anos no trabalho interior e, de repente, o abandonam?
O desenvolvimento pleno da consciência
É fácil compreendê-lo: porque a consciência delas se desenvolveu muito parcialmente, ou seja, focalizaram uma coisa e se esqueceram de dez outras. Por exemplo: alguém atinge certo grau de atenção no trabalho interior, mais especificamente nas práticas meditativas, e fica satisfeito. Deixou, porém, de perceber uma série de características dos cinco centros chamados inferiores (que o Sr. Gurdjieff denominou mental, emocional, motor, instintivo e sexual), ou seja, não conhece seu conteúdo. Pode, por exemplo, continuar com um mental preconceituoso, ocupado por conceitos rígidos, ser contra isto ou aquilo. Se não tomar consciência disso, continuará a emitir velhas opiniões, adquiridas em outra época da vida. Estará mantendo, em 2007, idéias vigentes na década de 70. Quem pratica a meditação muda a vida em alguma medida, mas não completamente, porque o que a determina é o conteúdo de cada um dos centros – de que esse indivíduo não tem consciência. Se esse conteúdo não chegar a seu plano racional, nada se alterará e, em determinado momento, a pessoa vai ser arrastada pelos acontecimentos da vida e deixará o Grupo. O mesmo pode ser dito de gente que não consegue ter sucesso. Se cultivo, por exemplo, uma auto-imagem negativa, como é que vou alcançar êxito? O processo meditativo faz emergir o subconsciente. Muitas pessoas ficam inquietas quando começam a praticar o recolhimento. É o subconsciente de seus centros querendo vir à tona. Nesse estado, os cinco centros se apresentam, na esperança de que a pessoa possa resolvê-los de alguma maneira. Muitos não agüentam! O indivíduo chega aqui e pratica, recebe a qualidade de determinada reunião, fica motivado ao ver pessoas se trabalhando. Só que não muda!
As pessoas não querem mudar
Eu não me esqueço de uma companheira de vocês, que tinha uma estrutura rígida de negatividade. Um dia o Lauro a orientou a alterar essa disposição básica, que estava condicionando toda a sua vida. Ela, então, sintetizou o que eu acabei de dizer, respondendo: “EU NÃO ESTOU AQUI PARA MUDAR”. Vocês podem imaginar quantas pessoas chegam aqui, participam do Grupo, recebem o que procuramos ensinar, mas tomam tudo de maneira muito restrita, ou seja, muitas vezes, querem apenas ficar mais calmas, melhorar da depressão, ou viver melhor com a família, mas se transformar mesmo, não querem!
A essência do processo de crescimento interior
A essência do processo todo é a descoberta de que “EU NÃO SOU NENHUM DOS MEUS CENTROS”. Quando o percebo, conscientizo-me de que todo o conteúdo deles faz parte do meu condicionamento. Mesmo em grandes mestres hindus, por exemplo, que respeitamos por suas grandes qualidades, é possível notar o condicionamento advindo de sua etnia. É fácil constatar que no relacionamento com a mulher, com o sexo, o dinheiro, etc., muitos deles não conseguiram ir além de sua programação. Portanto, se o sujeito não percebe que tem de se desvestir de pelo menos um grande número de seus condicionamentos, como, por exemplo, os referentes à nacionalidade, não há verdadeira transformação. Em outras palavras, a mudança real depende de “desidentificar-se” de rótulos do tipo “eu sou brasileiro, italiano ou hindu”. Na verdade, “EU NÃO SOU NENHUM DESSES RÓTULOS”.
A nossa vida está totalmente condicionada a uma idéia falsa
Grande parte da minha vida reflete o que “penso que sou”. É claro que alguns acontecimentos não estão sujeitos à minha vontade, como, por exemplo, o que ocorreu em Chernobyl. Mas a maneira como as pessoas enfrentam fatos imprevisíveis, isso ninguém tira de quem tem um trabalho interior. Até o modo de encarar a própria morte está em nossas mãos. Mas se você não se trabalha interiormente, se não se dá conta de seus condicionamentos (e não há ser humano que não os tenha), não há como fazer face ao inesperado, àquilo que não está sob seu controle.
Agora que chegamos até aqui, é bom esclarecer o que é condicionamento: podemos dizer que é um programa, fazendo uma analogia com o computador, ou um adestramento, falando em termos de animais. Cada um de nós tem de se desvincular de seus condicionamentos para florescer como Ser. Há pessoas que vêm ao Grupo porque é bacana e não para se modificar, como afirmou aquela moça. Na verdade, o grito dela foi de raiva! Poucos querem, de fato, mudar! Muitos procuram a meditação “para experimentar certos estados”, para passar por experiências e não para se transformar. As pessoas não estão interessadas em mudar!
A transformação é a única possibilidade de crescimento interior
A transformação é a grande possibilidade do ser humano! E em que consiste? Em perceber que nossos condicionamentos constituem uma grande limitação, que enquanto estivermos identificados com eles não podemos nos expandir. A grande mudança do ser humano é a expansão. Se, em vez de agir como budista, passo a atuar como comunista, isto é apenas exterior, é um novo condicionamento. A grande transformação é a expansão, é ficar maior do que o condicionamento. Quando isto acontece, você se torna adulto. O adulto observa as agonias da criança com um sorriso. E o que é ser adulto, comparado à criança? Se tenho 25 anos, contemplo as angústias dos meus quatro ou cinco anos de idade – como, por exemplo, a perda de um carrinho que tanto me entristeceu – com um sorriso, porque cresci. Em nosso caso, o crescimento é interior. E o que é crescer interiormente? É começar a perceber que ajo de determinada forma porque meu pai, minha mãe ou professora me ensinaram assim. Ou minha etnia ou religião. A programação que nos condiciona nos torna robôs. Por exemplo, é muito engraçado ver a rapaziada de determinadas comunidades que não se mistura com as moças de outras comunidades. Nesses grupos fechados, na maioria das vezes, os casamentos são arranjados, e o homem conserva uma postura de distanciamento da mulher, não adquire intimidade com ela. Estamos falando de jovens de 22, 23 anos, que a gente vê na rua a toda hora. Temos de respeitar, porque faz parte do humano, mas são pessoas totalmente “robotizadas”.
O nosso subconsciente determina a nossa vida
Nosso subconsciente determina tudo – nossos pensamentos, emoções e ações! Por estarem tão profundamente condicionadas, as pessoas, apesar de chegarem até aqui, não querem realmente se transformar. A experiência da Rádio Mundial nos mostrou que é inútil falar em transformação: ninguém quer escutar, há sempre o poder absoluto da programação. Na verdade, todo condicionamento tem um dispositivo de autopreservação. Assim, se eu o ensinei a ser católico, você vai seguir essa religião; se o programei para ser ateu, dificilmente você não o será. É por isso que, aqui no Grupo, procuramos dar às pessoas uma possibilidade ampla, a mais esférica possível, de mexer em todos os condicionamentos. Mas mesmo aqui vemos exemplos gritantes da força deles. Por exemplo, grande parte do Grupo, bem mais da metade, não quer fazer Movimentos ou Revitalização. Porque as pessoas são tocadas em sua estrutura interna, fazem posturas que abalam sua programação. O Sr. Gurdjieff deixou isso claro quando introduziu os Movimentos como parte importante do trabalho de transformação. O gestual é um meio brilhante de abalar a estrutura de condicionamento das pessoas. E mesmo aqueles que participam dos Movimentos ou da Revitalização resistem às mudanças gestuais. Muitos dizem não conseguir mudar o ritmo! É que mudar o ritmo movimenta a estrutura interna. Podemos constatá-lo de forma muito simples: se tomarmos um profissional de dança do mais alto gabarito, um bailarino do Bolshoi, por exemplo, que passa oito a nove horas por dia dançando, e o levarmos a uma escola de samba, veremos que ficará ridículo sambando. É claro que não se trata de incompetência dele, mas seu corpo não foi treinado para esse ritmo. No entanto, todo o mundo se curva diante dele quando executa um balé clássico.
Por isso, estamos procurando empreender uma revolução com as aulas de Revitalização. Ela alcançará, no futuro, uma dimensão muito grande. Estamos transformando as pessoas pelo gestual. Com novas maneiras de se movimentar, a pessoa começa a mudar.
SER: Estamos falando de vida interior e vida exterior, e me dei conta, neste momento, do seguinte: o Sr. Gurdjieff deve ter viajado muito, e quem muda de ambiente é obrigado a alterar seus parâmetros, não é?
Obrigatoriamente, mas isso acontece por pouco tempo; então, não adianta nada. Quando a pessoa volta, ela retoma seus condicionamentos.
Conclusão: as duas faces da atitude meditativa
Para concluir, podemos dizer que a atitude meditativa deve ter duas faces: uma é a da calma, da grande tranqüilidade, da beatitude, e a outra é a da visão clara dos acontecimentos internos, em nossos cinco centros inferiores. Quando o fazemos, percebemos que, muitas vezes, temos atitudes problemáticas, cuja origem é o condicionamento familiar. Não chegamos a essa conclusão fazendo uma análise racional de nossa vida em família, mas mantendo uma atitude meditativa enquanto agimos no mundo.
SER: Existe livre-arbítrio? Em caso afirmativo, em que medida podemos ter acesso a ele?
O ser humano tem liberdade?
Vou escapar um pouco da expressão livre-arbítrio, que, por ser muito usada na literatura, está carregada de velhos conceitos, dificultando a entrada de novas idéias. Vamos falar em termos de liberdade. A questão fundamental é: “O ser humano tem liberdade?” A idéia de livre-arbítrio pressupõe que o homem possa tomar decisões autônomas de acordo com as alternativas possíveis, ou seja, que ele é livre para escolher isto ou aquilo. Então, a questão só se levantaria nos momentos mais agudos de opção, porque se parte da premissa de que o homem tem, em princípio, certa liberdade.
O verdadeiro ser humano
Em primeiro lugar, procuremos entender o que queremos dizer com a palavra “homem”: de que homem estamos falando? Quando as pessoas discutem o assunto, não se dão conta de que pensam em homem como uma pessoa, uma individualidade, isto é, eu, Fulano de Tal, com tal diploma, morador de tal cidade, filho da Sra. Beltrana com o Sr. Sicrano, nascido em determinada nação, com certa cultura, pertencendo a esta ou àquela etnia. Não percebem que estão chamando de pessoa, ou de ser humano, alguém já condicionado por todos esses atributos. Assim, discutem a questão do livre-arbítrio a partir deste suposto ser humano, que é apenas o ser humano programado. Em nosso modo de ver, que é uma forma tradicional de focar o tema, esse não é o homem real, porque o verdadeiro ser humano preexiste a todos esses condicionamentos.
O ser humano segundo as tradições hindu e cristã
Vamos buscar referências primeiramente na tradição hindu, para a qual o ser humano, antes de ter nome, habitar um corpo e receber o condicionamento imposto por sua cultura, é, essencialmente, SAT, CHIT e ANANDA (CONSCIÊNCIA, VIDA e BEATITUDE), e tem condições de atingir a plenitude. Podemos também apoiar-nos na tradição ocidental, quando trata, por exemplo, de alma. No Ocidente, usam-se freqüentemente as expressões espírito e alma como sinônimas, significando que há um ser humano necessariamente condicionado pelo mundo em que vive, mas que existe também uma outra coisa, a Alma, o Espírito, que é o verdadeiro ser humano, em toda a sua plenitude. Posto isso, podemos começar a compreender a questão da liberdade.
O homem condicionado não tem liberdade
A partir desse esclarecimento, vamos desenvolver um pouco nosso ponto de vista sobre o problema da liberdade. Pelo que acabamos de expor, fica evidente que o ser humano, no plano de seus condicionamentos, não tem a mínima liberdade ou, em outras palavras, a única de que dispõe é a de escolher entre os inúmeros programas nele gravados: todas as suas crenças, opiniões, leis e obrigações nele inscritas durante sua história. Se escapar de um, cai em outro. Não tem escolha. Na verdade, as pessoas vêem, sentem ou pensam o mundo a partir do que lhes foi ensinado. As que se rebelam adotam outras opiniões provindas de fontes, grupos, culturas diferentes. Quando se torna possível, então, falar de liberdade? Quando começa a atuar em um ser humano a realidade profunda que é sua consciência inata, independente de condicionamentos, algo que lhe é inerente. Quando a consciência não-condicionada começa a despertar, inicia-se também um trabalho de revisão de tudo aquilo que o programou. Nesse processo, desponta a possibilidade de alcançar certa liberdade, ou seja, de tomar decisões a partir de um núcleo não-condicionado.
O conhecimento racional e o conhecimento meditativo
Evidentemente, muitos não aceitarão essa colocação, por não terem acesso ao conhecimento meditativo. O cientista ou o intelectual usam apenas o pensamento como instrumento de investigação, que não é o único recurso, ainda que seja importante. O que afirmamos, junto com as tradições iniciáticas, é que o ser humano pode ter também uma forma de conhecimento direto, por contato ou por comunhão – o conhecimento meditativo. Este precisa ser vivenciado, e não apenas defendido teoricamente. Na verdade, ele não prescinde do conhecimento alcançado por meio do pensamento; pelo contrário, casa-se com ele, ambos se unem. São duas formas de conhecimento que caminham juntas, embora sejam diferentes. Há constatações que não são acessíveis ao homem pelo pensamento, só lhe chegam por experiência direta.
O adolescente é um bom exemplo disso
No adolescente, essa possibilidade surge no momento em que ele começa a questionar tudo o que lhe foi imposto pela família ou pela cultura vigente. Logo depois, porém, isto é afogado. Este é um ótimo exemplo até para os pais compreenderem a chamada crise da adolescência. Na verdade, ela é uma tentativa espontânea de fazer emergir a consciência não-condicionada, mas, em seguida, esta é engolida pelo conhecido. O fato de essa consciência querer aflorar na época da adolescência não significa que o adolescente tenha o poder da vontade, ou uma visão clara. Pelo contrário, é muito comum que, ao não se encaixar nos padrões da sociedade, ele se torne um adulto rebelde, lutador, até mesmo revolucionário. Mas não por saber com o que está realmente inconformado. Pensa que tem de lutar contra certas determinações humanas. Na verdade, o revolucionário está pressentindo que deveria defrontar-se com seu verdadeiro destino como ser humano.
O verdadeiro destino humano
O verdadeiro destino humano é encontrar sua real natureza, e não fazer reforma política. A reforma pode vir como conseqüência natural da descoberta de sua verdadeira natureza. Porque quando mergulhamos em níveis mais profundos de consciência ou de inteligência, começa a surgir uma pergunta importante: “Que vontade devo seguir?” É claro que existem inúmeras “vontades” oriundas do fato de viver neste planeta, como, por exemplo, de se alimentar, de se locomover, dar e receber afeto, fazer sexo, absorver o conhecimento intelectual, etc. Mas na medida em que se mergulha em um plano mais profundo de inteligência, é possível não ser mais escravo dessas vontades, que deixam de ser tão imperiosas. Quem não tem contato com essa inteligência profunda não tem nenhuma liberdade em relação ao domínio dessas cinco vontades.
O selvagem também é pressionado
O selvagem também está sujeito às cinco grandes “pressões” que fazem parte do lado animal da natureza humana. Sendo o homem um animal, mesmo o selvagem, cuja parte mental não é muito desenvolvida, é um robô dirigido pelos cinco grandes impulsos. E o ser humano civilizado, se não tem contato com a inteligência mais profunda que vem de um plano acima do mental, também é um robô à mercê desses impulsos, desses cinco grandes poderes. Só o aprofundamento da consciência traz consigo a liberdade!
O segundo nível de liberdade
É somente a partir da consciência profunda que o homem pode VER as cinco pressões atuando em si mesmo. VER é o segundo nível de liberdade – que o adolescente já não tem. Quem se trabalha, digamos, na meditação, quem entra no processo de crescimento interior começa a perceber claramente que ele, em si, é uma coisa, e que as cinco pressões fazem parte dele, mas não esgotam seu Ser.
Servir um plano maior é liberdade
Quando ultrapassamos o segundo nível de liberdade, passamos a nos perguntar: “Qual é o sentido da minha vida, a que devo servir?” Pode parecer estranho trazer o tema “servir” exatamente quando a pergunta fundamental gira em torno da liberdade. É nesse terceiro estágio que compreendo que devo servir a duas coisas: à minha sobrevivência e também a algo maior. Na medida em que sirvo a um plano mais alto, estou a caminho da liberdade. Para que não soe estranho, vamos fazer uma analogia com uma empresa. Se um funcionário procura compreender quais são as metas da firma em que trabalha e qual a função que deve exercer dentro dela, ele obtém grande liberdade de crescimento, de progresso pessoal dentro da empresa.
Liberdade e o cumprimento de leis
Entramos agora em um plano bem mais profundo: começamos a compreender que há leis no Universo e que, na medida em que servimos a elas conscientemente, somos mais livres! Podemos aqui fazer analogia com a sociedade organizada: dentro de um Estado de direito, na medida em que seguimos as leis impostas a todos os cidadãos, vamos defrontar-nos com certas restrições, sem dúvida, mas ao mesmo tempo gozaremos de grande liberdade dentro do Estado. Ao passo que, se contrariarmos as leis, muito provavelmente seremos presos. Vamos transportar a analogia para o Universo como um todo. Por exemplo, um cientista que se dedica à Cosmonáutica tem a liberdade de enviar uma espaçonave para outro planeta, por conhecer e dominar as leis da Física. Ele adquire a capacidade de mandar alguém para outro lugar do imenso Universo, tem o poder e a liberdade de fazê-lo. E liberdade é poder!
Liberdade é poder
Quando se serve conscientemente, ganha-se poder. Logo, existe uma relação entre liberdade e poder. O cientista que conhece as leis da Física e obedece a elas, ganhando assim o poder de enviar a espaçonave a um planeta ou outro local do sistema solar, tem uma liberdade que o homem ignorante dessas leis não possui. Ele se ampliou pelo cumprimento de leis das quais tem profundo conhecimento. É muito curiosa essa conexão entre liberdade e poder.
SER: A última questão que trouxemos hoje está relacionada com o mundo do milagroso, da magia. Magia implica liberdade?
Liberdade e Magia
Para entrar no mundo da magia, é necessário um estado de consciência diferente. É preciso acessar outro instrumento de conhecimento, de inteligência. Os homens, em geral, têm a ferramenta do mental, e isso é maravilhoso. Podem realizar com ela algum tipo de magia, como, por exemplo, enviar a nave espacial a outro ponto do Universo. Isso é mágico, claro que é! Mas o entendimento que se obtém pela interiorização tira de nossos olhos o véu da banalização. Porque olhos e ouvidos condicionados banalizam a vida. Para eles, tudo é ordinário, nada importa: o bebê não é importante, o nascimento não é importante, uma planta não é significativa, um animal não é relevante. E na verdade, tudo isso é importante, porque é milagroso! A vida é extraordinária! Podemos, então, dizer que o milagroso não é a descoberta de alguém que tenha feito algo incomum, um truque. Fazer magia é retirar da consciência o véu da banalização, é recuperar o olhar da inocência que nos faz ver tudo como milagroso. Não é a obtenção de uma fórmula mágica de poder. O poeta inspirado e, muitas vezes, mesmo o cientista, têm momentos de percepção do milagroso. O cientista que consegue ultrapassar seu instrumento de conhecimento, o mental, pode adquirir uma compreensão absolutamente encantadora do mundo que o rodeia. Esta é a grande beleza: a possibilidade de entrar em contato com o milagroso.
O contato direto com o mundo que nos rodeia
Perceber o mundo diretamente significa apreender as coisas para além das definições mentais. Tudo que concebemos hoje é captado através de um colorido mental ou emocional. Ao olhar para uma pessoa, em geral não a vejo, meu olhar está embaçado por conceitos mentais ou filtros emocionais. Quando ampliamos a consciência e adquirimos maior liberdade, podemos fazer contato direto com o mundo, ou seja, podemos vê-lo sem que essas opiniões e vieses se interponham entre nós e a realidade. O ser humano é basicamente um ser de percepção. Um bebê, por exemplo, não pensa, mas percebe. Nesse sentido, podemos dizer que a percepção é a função primordial da consciência humana. Ora, ela ficou extremamente poluída por inúmeros conceitos mentais e associações emocionais captados durante nossa existência na Terra. Por isso, não temos mais a percepção direta. Para acessar o mundo do milagroso, precisamos, antes de tudo, recuperá-la.
Percepção direta e discernimento
O bebê nasce com ela, mas é incapaz de formular qualquer coisa, não desenvolveu ainda as ferramentas necessárias. Terá, então, de passar pela vida e tornar-se adulto, para que os instrumentos de sua percepção tenham condições de exprimir o que ele capta. Mas assim que o homem atinge certo grau de sofisticação em seus instrumentos, tem de recuperar a percepção direta de quando era bebê. Nos Evangelhos, chama-se esse estado de “inocência”. Tornamo-nos adultos e depois devemos voltar a ser crianças, isto é, retornar a nosso estado primordial. Existe, pois, um conhecimento discursivo e outro que não é assim. Quando se entende isso, tudo fica claro! O que nossa Escola procura é desenvolver, em cada um de seus membros, as duas pontas do bastão: o conhecimento discursivo, até atingir sua melhor qualidade, e o conhecimento direto.
O todo iluminado
Muito poucos conseguem, ao mesmo tempo, acessar o conhecimento direto e desenvolver a competência de usar a linguagem discursiva clara, ou seja, raros merecem ser chamados de “todo iluminado”. Entre estes, podemos citar Santo Tomás de Aquino, que alcançou as duas pontas do bastão, pois possuía um discurso altamente sofisticado e, ao mesmo tempo, o conhecimento direto. Isso se aplica ainda, inegavelmente, a outros, como Platão, Sócrates e Plotino. Essas grandes figuras marcaram o mundo, e até mesmo os acadêmicos estudam e respeitam o legado que deixaram.
A liberdade não está em combater o condicionamento
Podemos dizer que não ganhamos liberdade combatendo o inevitável condicionamento. Ao contrário, temos de obter a inteligência advinda do conhecimento direto. Assim, a liberdade é conquistada sem precisar lutar contra nada. O resto é utopia! Quando Cristo diz, no Evangelho segundo São João, “Vinde a mim as criancinhas”, está falando do conhecimento direto, não-condicionado, simbolizado pelo estado de inocência da criança. Os Evangelhos são um manual sobre essa possibilidade. Há também exemplos no hinduísmo. Quando Krishna diz a Arjuna: “Você está vendo meu corpo, mas não sabe quem Eu Sou”, está-se referindo ao corpo tangível, à realidade, a seu corpo ali presente, mas também a outra realidade que é impalpável. É uma maneira de dizer que há dois tipos de conhecimento: o tangível, representado nessa passagem pelo corpo físico, e o imaterial, que não é apreendido pelos sentidos. Eu só ganho liberdade se tenho os dois tipos de conhecimento, os dois instrumentos reunidos.
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